João Cutileiro

"Évora ou Manhattan"

João Cutileiro nasceu em Lisboa, em 1937, filho de pais alentejanos. O trabalho do seu pai na Organização Mundial de Saúde levou-o a fazer frequentes viagens desde muito novo, que o marcaram tal como o contacto precoce com alguns dos mais importantes vultos da cultura portuguesa. Fez a primeira exposição com apenas 14 anos e cedo se decidiu a abraçar a escultura. Depois de aturar durante dois anos o conservadorismo da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa resolveu ir estudar para Londres, na Slade School of Art, da qual saiu em 1959 com um diploma e os prémios de composição, figura e cabeça. Regressou a Portugal no início dos anos 70 e fixou-se em Lagos, onde o seu "D. Sebastião" representou em 1973 a ruptura simbólica com a "escultura fascista". Desde 1985 que Évora é o seu reduto, o que nos dá o privilégio da sua presença e, por vezes, das suas palavras...

O facto que ter vivido uma infância repartida por muitos sítios diferentes e uma adolescência na Avenida Elias Garcia, em Lisboa, em contacto com pessoas como Vieira da Silva, Lopes Graça ou António Pedro, foi determinante para construir o João Cutileiro que conhecemos hoje?

Suponho que sim... Não tenho outro "João Cutileiro" que não tenha convivido com essas pessoas para comparar...

Foi esse convívio que lhe deu força para dar o salto para Inglaterra, quando ficou insatisfeito com o ensino artístico em Portugal dos anos 50?

Aí já não sei se essa força vem desse lado... Tenho a sensação de que é mais biológico. É o género de coisa que tem mais a ver com uma maneira de ser básica da pessoa que não aceita a mediocridade e tem ambição, e a ambição não se cria com facilidade por convívios.

A sua ida a Florença no início dos anos 50, onde esteve em contacto com as obras de Miguel Ângelo, esteve na origem ou foi um resultado da sua decisão de abraçar a escultura como a sua ocupação artística principal?

Eu fui a Florença porque já estava mais do que determinado em ser escultor. Fui exactamente porque queria ver ao vivo tanta coisa que me pesava na história da escultura ocidental. Há nove anos fui a Xi’an pelas mesmas razões que fui a Florença, para ver as esculturas de terracota.

O ano que viveu em Kabul, no Afeganistão, foi marcante?

Muito. Tive a sensação que tinha ido para uma Idade Média. Não convivi com o povo afegão, não era possível, excepto com um homem que era meu senhorio, pouco mais velho do que eu e nosso vizinho. Tínhamos uma relação próxima, de amizade e cumplicidade. Fora isso, não tínhamos acesso a nada senão as ruas, o ver e saber de histórias... Era uma coisa muito estranha.

O seu percurso é marcado pela ruptura com a estética conservadora salazarista.

É que não é uma ruptura: eu fui educado por uma estética que ainda hoje me rege, o que eu não aceito é aquela que me vêm impor. Não sou eu que faço a ruptura, quem fez a ruptura foi a chamada "escultura fascista".

Mas o seu "D. Sebastião" em Lagos representou um "25 de Abril" na escultura portuguesa, seis meses antes do verdadeiro 25 de Abril de 1974?

Mas não tive a mais pequena intenção de fazer uma ruptura com a escultura portuguesa. Eu fiz o que me apeteceu, aliás com um preço muito caro, para mim que sou avarento, porque ofereci a escultura. Porque a queria fazer e não queria estar sujeito às pressões deles. De forma que cada vez que eles me vieram chatear "Não seria melhor assim ou assado?" eu dizia "Ah, não querem?", de forma que continuei com a liberdade toda, sem ser aliciado pelo "vil metal" que viesse no fim. Eu sabia que se houvesse o equivalente hoje a uns milhares de contos largos na "cenoura que faz correr a lebre" talvez não tivesse tido a força...

Mas com o Memorial ao 25 de Abril do Parque Eduardo VII, apesar de ser pago, teve a mesma liberdade criativa?

Mas essa liberdade foi-me dada por tudo: para começo de conversa, em honra do próprio 25 de Abril que me deu essa liberdade, reforçada pelo João Soares, que veio aqui e me disse: "Não quero ver maquete! Você tem total liberdade, faça o que quiser". Achei isso fantástico vindo de um tipo do poder, dos que gostam sempre de ver "mais ou menos como é que vai ficar", que não querem condicionar o artista "mas"...

Não gosta de fazer as maquetes que geralmente são necessárias para esse tipo de obras?

Adoro fazer as maquetes, odeio mostrá-las. Adoro fazer o estudo, a escala pequena e tudo isso. No minuto em que mostro, tenho a sensação de que me estou a vincular àquilo e a perder a liberdade de fazer o que me apetecer, de a meio virar tudo do avesso. Se eu já tiver mostrado à "entidade competente", para qualquer alteração que eu queira fazer sinto-me na obrigação de telefonar à entidade encomendadora e dizer: "Olhe, afinal a cruz fica na mão esquerda, importa-se?".

Como encarou a polémica que rodeou o seu Memorial ao 25 de Abril?

Eu acho que consegui ter uma posição quase antropológica, quase como se aquilo não fosse meu. Achei muito curioso ver a maneira como as pessoas reagiram, o porquê das reacções, as diferentes cargas... E ainda não acabou.

Não tem mais esculturas em locais públicos por ainda estar viva uma certa estética conservadora do Estado Novo?

Isso é verdade por si, mas é capaz de não ter influência na profusão das minhas peças. Tem muito mais influência o facto de não me apetecer "mexer". Por razões freudianas, eu sou tão inseguro que só me apetece fazer as coisas não por ter andado a convidar para jantar e a "tocar o violino" das entidades, mas porque elas vêm ter comigo.

Escolheu a pedra como seu material de eleição...

Eu não a escolhi, ela é que me escolheu a mim na primeira vez que lhe mexi... Eu não gosto de fazer formas não regradas em madeira, porque é viva demais. Os outros materiais que sobram são o bronze e o ferro: os ferros enferrujam e os bronzes metemo-los nas mãos de uns estupores que não só não fazem uma réplica boa do original que lhes foi entregue, como até nos devolvem esse original estragado!

Tal como ao material utilizado, tem-se mantido fiel aos principais temas do seu trabalho: as mulheres, as árvores, as flores, os guerreiros...

Mas admito que se possa ver que estes guerreiros são diferentes dos de há trinta anos, as flores também e as mulheres também. É bastante provável que a maneira como eu olho para uma flor, uma mulher ou um guerreiro se tenha modificado.

Mas nesses vários temas a sexualidade está sempre presente, como um fio condutor.

Talvez, mas se calhar em toda a história da Escultura também foi assim, de forma mais ou menos velada.

Os seus interesses artísticos não se esgotam na escultura. Também desenha e fotografa...

O desenho e a fotografia são pontos de partida. Para o quê, não sei... Não são exactamente produtos finais.

A maior parte das figuras da escultura portuguesa actual trabalhou consigo durante algum tempo, mas tentou deliberadamente não os influenciar esteticamente. Foi para não criar uma "escola"?

E acho que consegui. Quanto mais próximos estiveram os jovens escultores a trabalhar comigo, mais distantes são as coisas que eles fazem. As maiores imitações são de tipos que eu, muitas vezes, nem sei quem são! Não lhes conheço a cara, se os vir na rua não sei quem são. Sei o nome, porque vi "a escultura do senhor fulano tal", mas se o "senhor fulano tal" me bater à porta, eu abro e não sei quem é...

Apesar de ter as mesmas iniciais que Jesus Cristo, não é muito católico…

Mas Cristão sim… Católico não, mas Jesus Cristo também não era católico, nunca o ouvi dizer tal...

O que lhe desagrada no Catolicismo, a instituição Igreja?

Sim, claro, acha pouco? E o que têm feito nos últimos dois mil anos. De vez em quando até acertam, como no comportamento da Igreja Católica em relação a Timor. Mas é a excepção... A Igreja tomou sempre o outro lado, o lado do Salazar.

Foi sempre activo em relação à política, esteve no MUD Juvenil, passou pelo PCP, hoje tem uma participação regular na vida pública, mas parece que o faz com algum cepticismo e distanciamento. Como é que encara a política e os políticos portugueses?

Com essa pergunta lembrei-me de uma frase de um homem de quem eu gosto muito, o Günter Grass, que deu uma entrevista muito antes de ter sido Prémio Nobel na qual dizia "é preciso aprender a lutar sem esperança".

E não tem esperança na política?

É exactamente por não ter que eu luto. Se eu tivesse esperança, sentava-me e deixava os outros fazer, porque confiava neles. Mas eu sou muito descrente, até na Medicina... Discuto com os meus médicos e muitas vezes ganho.

Como é que vê a evolução de Évora, desde que cá se fixou há quinze anos?

Outro dia encontrei o Dr. Abílio Fernandes num sítio qualquer, perguntei-lhe como é que ia a cidade e ele disse-me uma coisa absolutamente fabulosa: "Tudo o que a gente faz de bom tem um lado mau". Deu como exemplo o mais óbvio: que bom que é atrair a juventude para Évora, que bom que é ter a Universidade e tanta gente nova. E o horror que é ter os munícipes a queixarem-se dos ruídos dos bares, das discotecas... É um beco sem saída: ou se trava tudo e a cidade morre, ou se desenvolve e paga o preço. É muito difícil ter um desenvolvimento completamente controlado.

A sua decisão de voltar a Évora foi um regresso às origens, ao sítio onde os seus pais se conheceram?

Se os meus pais fossem de Lamego, se calhar não voltava para lá, se fossem da Brandôa ou da Damaia certamente que não... Évora é muito bonita e é uma espécie de principado. Tem uma força própria muito grande. É quase ridículo de se dizer isto, mas o simples facto de se renovar aqui o bilhete de identidade e a carta de condução dá uma sensação de centralismo e não de uma posição periférica. Agora então, desde que o tempo de viagem de Évora para Lisboa foi reduzido para metade... Nós temos aqui a maior parte das coisas, Lisboa não tem muito mais para nos oferecer, nem o Porto. Mais, só em Nova Iorque. "Évora ou Manhattan", é o que eu gostava de ter nas t-shirts!

A Exposição

A exposição de João Cutileiro que se encontra no Museu de Évora nasceu porque o escultor recebeu, no final de 1995, um livro dedicado às flores, do fotógrafo americano Mapplethorpe. Inspirado por essas fotografias e por flores reais do seu jardim ou da sua casa, começou a produzir peças durante o ano seguinte, que vinham "como as cerejas, uma atrás da outra". Com mais uma ou outra, feita depois "para fechar o ramalhete", chegou a esta colecção de 38 flores de pedra e bronze, objectos simples, elegantes e discretos, que estão expostos até dia 26 de Janeiro e seria criminoso não ver.

Rui Grilo
(entrevista publicada no Jornal da Universidade de Évora n.º 12, Janeiro de 2000)